Paris em chamas
Do nosso enviado especial à capital francesa, José "Dimanches" Domingos.
Opa, de retorno à zona de batalha...
Eu estava em Istambul nestes últimos dias, e só tava acompanhando as noticias via TV5...
A coisa é bem complicada aqui na França pra ser explicada num e-mail, mas eu vou tentar resumir minhas impressões.
Desde que eu cheguei aqui leio grandes textos sobre a "fratura social", a dificuldade em montar no "elevador social", as dificuldades das comunidades das cités nos banlieues norte e leste de Paris e das grandes cidades, um bla-bla-bla importante e pertinente mas que deixava pouco a esfera filosófica de caderno dois e de debate de fim de noite na tv.
Oficialmente não existem minorias na França. A Constituição não reconhece esse status como nos EUA ou ailleurs. Somos todos franceses, Mas na pratica, se você não é franco-francês loiro de olhos azuis ou tem o nariz do Depardieu você é "d'origine", originário de algum outro lugar. Eu por exemplo, sou merecidamente "francês de origem brasileira"... E legal no começo (você se sente especial, como um vinho AOC), mas depois enche o saco pela necessidade imperiosa de estar vinculado a um rotulo. Mesmo alguns amigos 100% franceses sofrem disso.
Essa supressão forçada da multiculturalidade cria um sub-produto esquizóide, uma identidade cultural meio fake dos filhos, netos e bisnetos de imigrantes que é obviamente refutada quando por acaso eles retornam ao "bled", na Argélia, Marrocos ou onde quer que seja a "terra natal". Lá, eles são franceses. Aqui eles são estrangeiros. Mantenha sua sanidade com um barulho desses.
Ser "d'origine" aqui é f***. Ser estrangeiro, em geral, é complicado, é mais burocrático, mais cheio de poréns, incomoda. Pra ter uma idéia, quando eu fiz o mestrado, em uma das mais conceituadas escolas do pais, só os estrangeiros não arranjavam estagio pra conclusão de curso. Os franco-franceses, mesmo sem experiência, tinham 3 ou 4 propostas para escolher. Os estrangeiros penavam e uma menina da Colômbia foi a ultima das moicanas e só conseguiu com o velho e bom pistolão da escola, nos pênaltis.
No inicio dos conflitos, os lugares onde explodiam as bagarres eram em subúrbios ermos da região de Paris, onde eu sempre tinha que olhar no mapa para descobrir onde era. Esses lugares são verdadeiros guetos, e a diferença das nossas favelas é a urbanização anos 60-70 nas enormes "cités", onde o governo historicamente resolveu ir varrendo para debaixo do tapete os problemas da imigração por mais de 40 anos. Ou empilhando mais gente recém-chegada, afinal não é todo mundo que pode
pagar pelos exorbitantes e cada vez mais raros alugueis de Paris. Alguns dos lugares são historicamente foco de problemas sociais e a receita é fácil: junte 40 a 50% de desemprego (a média nacional é de 8%), baixo índice de escolaridade, fanatismo religioso e isolamento sócio-cultural. O desespero é só o tempero.
De uma certa forma eu, como estrangeiro, mesmo se não compartilho das mesmas dificuldades, compreendo e me solidarizo com os seus problemas. E mais difícil a colocação profissional de alguém que se chama Ahmed, ou Domingos, que de Thibault ou Pierre. Mesmo se estudaram na mesma escola. E finalmente, de que adianta estudar se você não tem nenhuma perspectiva desde pequeno?
O que é mais deplorável e o que detonou a coisa toda foram as declarações de Sarkozy, candidato-em-chefe à presidência chamando os jovens de "ralé" e prometendo limpar a cité dessa "gentalha". A posição do governo é ainda mais radical - ao invés de fazer seu mea culpa e de levantar as causas do problema num amplo debate nacional - partiram pro abafa e reprime, decretando estado de emergência, convocando o exército e autorizando aos préfets (como governadores distritais) a decretar toque de recolher. Pode funcionar, mas caso funcione para mim simplesmente vai adiar o problema mais algum tempo.
Não defendo o uso da violência, a queima de carros (que esta sendo hipermediatizada mas que acontece em toda grande festa) e de edifícios públicos, mas aparentemente é a única arma que os manifestantes conhecem e dispõem para se fazer ouvir. E neste caso, parece que esta dando certo.
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